A Polónia vai amanhã a eleições e o resultado deverá esfriar ainda mais a relação com a Rússia. Na fronteira, a tensão vive-se na pele
Cátia Bruno, em Gdansk Revista E (Expresso), 24 outubro 2015
Atravessar uma fronteira é como romper uma fina linha de tensão. As fardas impecavelmente engomadas, os pastores-alemães de açaime, as perguntas secas cuspidas pelos guardas e o alívio depois da ordem para seguir viagem. Esta fronteira não é exceção. Os poucos polacos que a atravessam preparam-se sempre para o que podem encontrar. O dinheiro é a melhor maneira de desbloquear situações inesperadas. Por isso, há quem coloque uma nota dentro do passaporte castanho, de páginas ilustradas com barcos e balões de ar quente, antes de o entregar ao guarda fronteiriço russo. “Detesto isto, mas venho sempre preparada com dinheiro”, confessa-nos uma polaca. Há sempre o risco de os guardas decidirem que o carro precisa de ficar re- tido “para avaliação”.
Ainda assim, a maior parte do tráfego neste ponto da fronteira faz-se em sentido contrário. Neste final de tarde de sexta-feira muitos russos de Kaliningrado preparam-se para fazer uma visita de fim de semana a território polaco, muito provavelmente à cidade de Gdansk. Famílias, homens sozinhos, grupos de amigos. Três rapazes, na casa dos 20 anos, aguardam junto a um dos postos por baixo do telheiro verde que diz “Rzeczpospolita Polska” (República Polaca) em gordas letras brancas. Ao lado, o seu carro, um SUV preto, é revistado. O cuidado que puseram na roupa indicia que vão a uma das várias discotecas da zona balnear de Sopot. Antes disso, têm de esperar que o guarda polaco de lanterna preta em riste acabe de inspecionar a bagageira: desde que as sanções europeias à Rússia entraram em vigor, o combate ao contrabando é redobrado. A fronteira entre a Polónia e o enclave russo de Kaliningrado tornou-se um local de tensão controlada quando a Rússia tomou a Crimeia e deu início ao conflito na Ucrânia, em 2014. O epicentro da guerra pode estar a quase dois mil quilómetros de Gdansk, mas mesmo assim há quem sinta a necessidade de se prevenir. “Talvez tenha sido uma coisa estúpida, mas no ano passado fui comprar uns recipientes daqueles grandes com água, só para ter em casa. Não sei por que o fiz”, confessa-nos Jan Daniluk, um historiador. O académico cora ligeiramente e encolhe os ombros quando o diz. Se por um lado, a razão lhe sugere que uma invasão russa é pouco provável, por outro, a emoção dá sinais do contrário. Basta ver os caças russos em exercícios mesmo ali ao pé, em pleno Báltico. Apesar de, por norma, falar depressa, este investigador especialista no pós-II Guerra Mundial abranda o ritmo quando aborda a geopolítica atual. Daniluk pensa no lugar que a Polónia, único país da UE que faz fronteira tanto com a Rússia como com a Ucrânia,ocupa neste xadrez. “Estou um pouco assustado. Não quero entrar em pânico, mas por outro lado está a passar-se alguma coisa e nós, polacos, não estamos muito longe disso”, confessa, os olhos azuis arregalados por trás dos óculos.
O PESO DA HISTÓRIA Percorrendo uma exposição sobre a II Guerra Mundial que ele próprio ajudou a montar, o historiador vai disparando dados à medida que passa em revista os artefactos espalhados pela sala. A certa altura, detém-se em frente a um simples cartaz — um antigo papel de propaganda nazi que alguém resolveu reaproveitar, escrevendo na parte de trás do cartaz amarelado, a letras vermelhas: “Longa vida à aliança polaco-soviética”. Para Jan, o cartaz ilustra bem o sentimento da maioria dos polacos, para quem nazismo e comunismo foram faces da mesma moeda. Se a ocupação germânica não deixou saudades, o domínio soviético, com um Governo nacional a seguir ordens de Moscovo, também não fugiu dessa linha.
Tudo começou com a libertação do Exército Vermelho, no final da II Guerra Mundial. Uma “libertação amarga”, nas palavras do historiador. “Os russos dizem sempre ‘como é que vocês podem ser tão ingratos? Nós libertámos-vos!’. Sim, libertaram, mas pelo meio destruíram as nossas cidades”, lembra. “É preciso ter a visão geral da situação. Na minha família, do lado da minha avó, houve mulheres violadas por soldados russos. E não sei de nenhuma família que não tenha estado envolvida de alguma forma nesta tragédia.”
Para um país historicamente disputado e ocupado pelo que hoje chamamos Alemanha e Rússia, a II Guerra Mundial foi o evento decisivo que marcou a história recente da Polónia. Mas já no século XIX, o poeta Adam Mickiewicz tinha escrito a peça “Dziady”, onde homenageava a revolução de novembro de 1830 da Polónia ocupada contra o Império Russo; um século depois, em 1968, as autoridades comunistas proibiam a peça de ser levada à cena, contribuindo para o descontentamento com o regime e para a crise política desse mesmo ano. O fantasma da Rússia, sempre presente.
É deste contexto histórico que muitos polacos se lembram quando olham para a Rússia de Vladimir Putin. Sobretudo quando ela está já ali, do outro lado da fronteira. Daniluk não foi o único a preparar-se para um futuro incerto. “Eu tenho alguns amigos que começaram a ir treinar tiro ao alvo. Eu disse-lhes ‘vocês nunca pegaram numa arma’ e eles responderam-me ‘sim, mas agora quero’”.
Há quem vá ainda mais longe e queira ter treino militar. Szymon Gruszecki é produtor de cinema em Varsóvia e, inspirado pelas histórias de guerra do avô, juntou-se ao grupo paramilitar FIA há já alguns anos. Ao Expresso, o polaco confirma que a sua milícia popular tem recebido muito mais inscrições desde a anexação da Crimeia e avança uma explicação: “É como se vivesses num bairro e de repente os teus vizinhos começassem a dar muitas festas. A polícia anda sempre a aparecer e tu ou trancas a porta ou então mudas de casa. Nós não podemos mudar de casa... É melhor estar preparado do que ser surpreendido.” O cenário atual já levou o Governo do partido Plataforma Cívica (centro-direita) a colaborar estreitamente com estes grupos. E esta é apenas uma faceta da tendência de militarização do Executivo liderado por Ewa Kopacz. Em 2015, a Polónia canalizou 2% do seu PIB para a Defesa — entre os 28 países da NATO, só os EUA e a Grécia superam este valor. “Tentamos ser bons vizinhos, mas por outro lado também queremos estar mais seguros”, justifica o diplomata veterano e ex-cônsul na região de Kaliningrado (1992-1994), Jerzy Bahr, num debate em Gdansk onde o Expresso esteve presente. “Esta também é uma situação nova para nós. Há cinco anos as ameaças não eram tão diretas, tão declaradas. O nosso trabalho é tentar fazer o melhor possível, mas mantermo-nos fortes militarmente.”
A somar ao rearmamento da região, surgem os incidentes diplomáticos entre a Polónia e a Rússia. O último envolveu declarações do embaixador russo em Varsóvia, Sergei Andreev, que remexeu na História e acusou os polacos de terem impedido uma coligação antinazi nos anos 30 — provocando indignação generalizada na Polónia. Meses antes, a demolição de alguns monumentos de homenagem ao Exército Vermelho na Polónia deixou irados os representantes russos. “A relação oficial mútua entre os dois Estados está pior”, admite Bahr.
VISITAS DOS VIZINHOS RUSSOS A tensão, contudo, já foi menor. Em 2011, Polónia e Rússia assinaram um acordo de tráfego local que permitiu a abertura da fronteira aos habitantes das regiões fronteiriças, mediante um cartão de autorização. Os locais podem assim visitar Kaliningrado ou as regiões de Varmia Masuria e Pomerânia, na Polónia, onde se inclui Gdansk. A entrada em vigor do acordo provocou uma revolução, com a chegada de centenas de russos a território polaco, atraídos pelos preços mais baixos.
A jornalista Paulina Siegień lembra-se bem desses tempos, já que escreve habitualmente sobre Kaliningrado para o jornal “Gazeta Wyborcza”, um título de referência na Polónia. Os seus lábios pintados de vermelho esticam-se num sorriso ao recordar: “Era euforia pura com o que estava a acontecer. ‘Uau, os russos estão a vir e são normais. Conseguem conduzir um carro, têm mãos, pernas e tudo o mais!’”, diz entre risos. O cenário repetia-se todos os fins de semana: no parque de estacionamento do IKEA da cidade de Gdynia, era difícil encontrar um carro que não tivesse a placa com o número 39, que identifica os veículos de Kaliningrado. Dentro da loja, os avisos das promoções passaram a ser ditos em polaco e em russo. Na caixa pagava-se em zlotys, mas também em rublos, que alimentavam a economia local. Só no primeiro trimestre de 2013, segundo as estimativas do Gabinete Central de Estatística polaco, os visitantes russos gastaram o equivalente a 113 milhões de zlotys na Polónia (cerca de 26 milhões de euros) — um aumento de 89,6% face ao mesmo período do ano anterior.
O sentimento era de abertura, mas tudo mudou no início de 2014, com o estalar da crise ucraniana. Na estância balnear de Sopot, um local de preferência dos russos, o dono de um restaurante decidiu colocar um papel na porta anunciando que se recusava a servir clientes do país vizinho. Era uma “forma de protesto”, dizia. O incidente inflamou a propaganda russa, que garantia nas suas televisões que os habitantes de Kaliningrado não eram bem recebidos na Polónia.
Tudo começou a ruir. O número de visitantes desceu, sobretudo devido à crise económica russa, que levou à desvalorização do rublo. De repente, já não havia carros no parque do IKEA com o 39 na matrícula. Agora, só os russos mais endinheirados visitam Gdansk em busca de algo específico, como o festival de teatro Szekspirowski ou uma visita a um spa. E os polacos não dão tanto por eles: ou não se passeiam pelas ruas, ou são mais discretos. No Madison, um centro comercial de Gdansk cujas traseiras dão diretamente para a igreja ortodoxa da cidade, não é preciso procurar muito para encontrar quem tenha pouca paciência para os clientes russos: “Não gosto deles, são mal educados, não sorriem”, diz-nos uma empregada de uma loja que vende sobretudo calças de ganga. “Só desarrumam e não compram nada.” Do lado russo surgem outras dificuldades. Paulina, que fala fluentemente russo e que vai quase todas as semanas a Kaliningrado, enfrenta agora muito mais restrições para trabalhar. Quando pede qualquer autorização na Rússia encontra mais barreiras e perguntas por parte das autoridades: “Porquê?”, “Para quê?”, “Como é que falas russo tão bem?” Para Paulina, atravessar a fronteira física ainda é fácil, mas cada vez mais a jornalista depara-se com outro tipo de muros — os que estão na cabeça de russos e polacos.
JOVENS EXIGEM “RESPEITO” “Não acho que seja possível mudar a mentalidade russa.” A frase é de Aleksandra Bukowska, uma estudante de psicologia de 21 anos nascida e criada em Frombork, uma cidade polaca a menos de 30 quilómetros de Kaliningrado. Também ela já passou para o lado de lá daquela fronteira, ao abrigo de um intercâmbio entre escolas das duas regiões. Mas nem o facto de ter estado em Kaliningrado e de ter feito amigos russos a faz mudar de ideias quanto à política de Putin, que despreza. Não é por isso de admirar que Aleksandra tenha sido uma das centenas de polacos que aderiram entusiasticamente à campanha “Coma maçãs para chatear Putin”. Depois de a fruta polaca ter sido banida da Rússia, muitas pessoas tiraram fotografias a comer maçãs e colocaram-nas nas redes sociais com a hashtag #JedzJablka (Coma Maçãs), para incentivar o consumo interno da fruta e ajudar os produtores do país, que perderam um dos seus principais mercados com o embargo russo. “Foi muito divertido, porque em todo o lado toda a gente estava a comer maçãs polacas. Nas lojas, nas escolas, em todo o lado!”, conta Aleksandra. O ativismo desta jovem estudante da Universidade de Gdansk vai para lá de uma ação espontânea no Facebook: recentemente, Aleksandra juntou-se à juventude partidária do Lei e Justiça (PiS), um partido conservador, nacionalista e antirrusso, que será muito provavelmente o vencedor das próximas eleições legislativas a 25 de outubro. As últimas sondagens dão-lhe 33%.
O sentimento antirrusso alicerça-se sobretudo nas camadas mais jovens da Polónia. Segundo um estudo de 2014 feito pelo Centro de Investigação Polaco da Opinião Pública, 56% dos inquiridos entre os 18 e os 24 aos dizem ter antipatia pelos russos — o nível mais alto entre todas as faixas etárias. E essa antipatia traduz-se em votos: nas eleições presidenciais, 60% dos jovens apoiaram na segunda volta o candidato do PiS, Andrzej Duda.
Ninguém sabe ao certo por que razão têm os mais novos aderido à mensagem do PiS, nem o motivo que os leva a serem um dos grupos mais críticos da Rússia de Putin. Alguns falam no papel da reforma educativa que o partido levou a cabo quando esteve no poder (2005-2007), pela mão do ministro Roman Giertych: as alterações feitas à disciplina de História terão ajudado a criar uma imagem da Polónia como vítima face à Rússia ao longo dos tempos. Outros dizem que os jovens, descontentes com a precariedade e o desemprego elevado, simplesmente gostam de pôr em causa o statu quo e de assumir posições mais radicais. “O meu marido é professor na Universidade e ele diz-me que esta geração mais nova é muito mais conservadora do que a nossa”, diz a jornalista Paulina, de 29 anos. “Os filhos dos anos 90 sentiram todo este período pós-moderno... São muito conservadores e isto preocupa-me, porque eles têm uma visão muito única da História.”
A confirmar-se a vitória do PiS nas eleições de amanhã, as relações entre a Polónia e a Rússia podem azedar ainda mais. “Não queremos lutar contra a Rússia”, garante Aleksandra, explicando as posições do seu partido. “Mas a Polónia precisa de se tornar um grande país, não em termos de área, mas em termos militares. A vida aqui seria melhor se os outros países nos respeitassem. Isso é o mais importante, o respeito.” O primeiro confronto deverá ser sobre o desastre de Smolensk, o acidente aéreo na Rússia onde morreu o então Presidente polaco Lech Kaczyński e outros membros da elite política do país. “Foi há cinco anos, mas o avião continua na Rússia e a Rússia não quer dá-lo. Acho que é um escândalo!”, diz Aleksandra.
Sentada num café do Centro Europeu de Solidariedade, local erigido para celebrar o movimento sindical liderado por Lech Walesa que ajudou a derrubar o comunismo na Polónia, Paulina reflete sobre o futuro. A jornalista teme que a subida ao poder do PiS acabe com todos os laços entre russos e polacos. Isso pode começar, por exemplo, pelo acordo de circulação entre Gdansk e Kaliningrado. “Eles podem estragar tudo”, desabafa.
Até lá, Paulina, tal como Aleksandra, vai mantendo contacto com os seus amigos russos. Mas, tal como a jovem estudante de Frombork, esta jornalista que ouve hip-hop russo e que vota assumidamente à esquerda evita falar de política com os seus amigos de Kaliningrado. “O que é estúpido, porque não há um diálogo real quando não discutimos as nossas posições. Mas acho que é melhor assim”, confessa sem rodeios. “Kaliningrado não vai desaparecer. Vai continuar a ser o nosso vizinho, que também é uma ameaça, mas as pessoas vão ficar lá e é melhor se tivermos boas relações. Porque não sabemos como vão estar as coisas daqui a cinco anos”, remata Paulina. Olhos nos olhos, com os lábios vermelhos apertados numa fina linha de tensão.