O dia a dia com a guerra a dois passos de distância
A ofensiva em Gaza continua e mais de 600 palestinianos já morreram. Mas com mais ou menos dor, nos outros territórios a vida continua, como contaram ao Expresso uma judia no sul de Israel e uma árabe na Cisjordânia
Cátia Bruno Expresso Diário, 23 julho 2014
Bombardeamentos de 30 em 30 segundos, ruas desertas, ambulâncias com dificuldade em chegar aos locais. Foi este o cenário que uma palestiniana na Faixa de Gaza descreveu ao Expresso na segunda-feira passada. Desde então, várias dezenas de pessoas perderam a vida - só ontem, terça-feira, terão sido pelo menos 50 (segundo fontes palestinianas).
Em Bersheeba, cidade dentro das fronteiras de Israel, o dia-a-dia em tempo de guerra também é diferente, como explica ao Expresso a israelita Michal Rotem: "A Universidade Ben-Gurion, onde estou a fazer a minha tese, está completamente fechada. Há quase uma paragem da economia, porque tudo está fechado. E depois há as sirenes... Podem apanhar-te em qualquer lado. E apesar de não ter acontecido ainda nesta ofensiva, no passado outras pessoas morreram dentro das cidades."
Michal tem 27 anos e trabalha para uma ONG que procura promover a cooperação entre Árabes e Judeus no deserto do Negev (sul de Israel). Foi lá que nasceu, mas tem origens búlgaras e polacas. Os seus avós, como muitos outros judeus, fugiram da Europa e procuraram refúgio em Israel. Mas apesar de ser tão israelita como muitos outros, Michal tem passado os últimos dias a fazer listas com o nome dos palestinianos mortos desde o início dos bombardeamentos, a 8 de junho.
Munida do árabe básico que aprendeu a ler na escola - mas não a falar - e através do seu contacto com os beduínos do Negev, começou a ajudar um colega da revista "Mekomit", onde colabora, a traduzir para hebreu a lista dos nomes dos mortos. Num artigo da própria revista, acabaria por desafiar os judeus que a lêem: "Independentemente da vossa posição sobre Gaza, abram esta lista e tentem ler os nomes em voz alta. Podem escolher ler só os das crianças. Depois tentem dizer-me que esta matança não deve parar." Ao Expresso, Michal justifica a decisão de embarcar nas traduções com poucas palavras. "É que as pessoas não são números", diz. "Em Israel nunca se sabem os nomes das vítimas."
Mais de 600 pessoas já morreram desde o início do conflito. Enquanto a comunidade internacional pede um cessar-fogo e o Alto-Comissariado dos Direitos Humanos da ONE fala até em possíveis crimes de guerra cometidos pelo exército israelita, as pessoas vão fazendo a sua rotina em Tel-Aviv, Jerusalém e tantas outras cidades, tentando abstrair-se do que se passa em Gaza. "Quanto atos destes são cometidos pelo nosso próprio Estado, é mais fácil olhar para os números - '600 palestinianos foram mortos' e não 'crianças, mulheres, jovens rapazes'", afirma Michal.
Em território israelita já morreram três civis, mas Michal reforça que um deles era beduíno e outro um imigrante tailandês, reforçando a sua ideia de que "os mais baixos da sociedade são os que acabam por pagar o preço." Sociedade essa cada vez mais militarizada, fruto da sempre presente ameaça de conflito, e que torna os israelitas cada vez mais distantes das vítimas: "Repara, na minha família não há oficiais nem nada do género. E no entanto todos discutimos coisas como rockets, bombas e ofensivas militares. Até em festas de aniversário!"
Bombas em Gaza, medo na Cisjordânia Mahmud Abbas, o líder da Organização pela Libertação da Palestina (OLP), declarou esta manhã que apoia as exigências feitas pelo Hamas em troca de um acordo de tréguas. O principal requisito do Hamas para um acordo tem sido o do fim do bloqueio económico à Faixa de Gaza. Sendo o Hamas considerado um grupo terrorista por Israel, EUA e União Europeia, as negociações são mediadas pelo Egito. Desde que o país passou a ser liderado por Abdel Fattah al-Sisi que as relações com o Hamas têm estado difíceis, fruto da ligação deste à Irmandade Muçulmana - grupo a que pertence o antigo Presidente Mohamed Morsi, deposto depois do golpe do verão passado. Se a OLP estiver disposta a entrar nas negociações para representar as exigências do Hamas, como as declarações de Abbas parecem indicar, pode ser mais fácil negociar um cessar-fogo. Michal não tem grande esperança que umas novas tréguas venham a ser as últimas. "Perdi um grande amigo no Líbano em 2006 e isso tornou-me pela paz. Mas nem toda a gente reage assim. Todos na região vamos pagar o preço por estas mortes."
Deema Mimi é dez anos mais nova, mas também já sabe o que é perder um amigo. A palestiniana de 17 anos viveu os 13 primeiros anos da sua vida num campo de refugiados em Ramallah, onde a sua família estava desde 1948. Atualmente, vivem em alojamento próprio na Cisjordânia, e foi nesta mesma Cisjordânia que Deema perdeu um amigo, como Michael. A diferença é que o seu amigo Nadim Nowarah, também de 17 anos, morreu à sua frente, vítima de disparos do exército israelita durante um protesto no dia da Nakba ("a catástrofe" para os palestinianos, referente ao êxodo na sequência da independência israelita de 1948).
Mas nem a morte de Nadim fez Deema deixar de participar nos protestos que se intensificaram desde o rapto e morte de um jovem palestiniano de 16 anos - num ato de vingança pelos três adolescentes israelitas mortos e rapatados alguns dias antes. "Temos três protestos por dia (manhã, meio-dia e noite)", explica Deema ao Expresso via Skype. "Mas já não é como era. O meu pai diz que as pessoas já não vão porque estão cansadas, só querem viver as suas vidas. Estão fartas da ocupação." Já Deema não desiste. Protesta e colabora na recolha de sangue para enviar para Gaza e no Centro "Pense nos outros" que procura recolher roupas, cobertores e outros materiais para os palestinianos da área bombardeada.
Na Cisjordânia, quase toda a gente conhece alguém que está na Faixa de Gaza. Um familiar, um amigo, um conhecido, fazem com que se viva em angústia permanente e se leia incessantemente as listas com os nomes dos falecidos - as mesmas listas que Michal Rotem traduz para o hebraico. É também o caso de Deema. Para além de familiares duma prima, a sua melhor amiga está em Gaza, para onde decidiu ir estudar há uns meses: ela é Shahd Tawfeq, a jovem de 19 anos com quem o Expresso falou no início da semana. "Culpo-me porque ela foi e não consegui impedi-la, ninguém conseguiu", confessa Deema, e a sua voz vem distorcida - em parte pela má ligação, em parte pelo choro que teima em aparecer. "Tenho muito medo de perdê-la e se isso acontecer vou ter uma cicatriz permanente no meu coração. Ela merece viver."