Eurovisão. Um festival que junta música, política e guerra
Este ano, o festival vai ter lugar na Ucrânia, país em guerra. E o barulho das luzes poderá não ser suficiente para abafar a política, que se infiltra por todos os lados. Reportagem em Kiev.
Cátia Bruno Observador, 8 maio 2017 Em Kiev
Da última vez que o Festival da Eurovisão teve lugar na Ucrânia, Maria Tomak tinha estado em protesto na praça Maidan apenas cinco meses antes, aquando da chamada Revolução Laranja, em 2004. Na altura, Maria, uma jovem estudante de 17 anos cheia de reivindicações e de esperança, ainda tinha de pedir autorização aos pais para ir até à praça da Independência gritar palavras de ordem. Agora que a Eurovisão está de regresso a Kiev, não consegue deixar de reparar na coincidência de esta voltar a acontecer no rescaldo de outra revolução, a da Euromaidan, em 2014. Mas, desta vez, as cicatrizes que ficaram são muito mais profundas — tanto que o mais certo é acabarem por contaminar o próprio festival. "Eu não faço parte daquele grupo da sociedade que ficou muito inspirado e depois muito desiludido. Isso aconteceu-me em 2004. Agora já não.” Sentada à mesa de um café em Kiev, Maria confessa assim o seu ceticismo, tão pouco característico dos jovens da sua geração. Já a decoração do local que escolheu para se encontrar com o Observador, um café com bancos corridos de madeira, candeeiros de inspiração industrial e bicicletas penduradas na parede, não destoaria de um café de jovens hipsters em Nova Iorque ou Berlim. “As pessoas sabiam que ia ser complicado, mas… Seria de esperar que, depois de se ter derramado todo este sangue, eles não conseguissem continuar com este nível de corrupção. E, no entanto, há quem continue a roubar dinheiro muito facilmente”, resume acidamente esta ativista. Aos 30 anos, Maria já trabalhou em várias ONG como a Euromaidan SOS ou a Iniciativa para os Media pelos Direitos Humanos, de onde teve direito a vista privilegiada para o funcionamento dos poderes nacionais.
O envolvimento de Maria no ativismo surgiu, por coincidência, pouco antes da revolução de 2014, quando trocou o jornalismo por um trabalho no Centro para as Liberdades Civis. “Foi o destino”, sentencia Maria, sorrindo, ao recordar esse tempo em que ainda não podia prever que dali a uns meses o seu futuro e o do seu país seriam alterados para sempre. Três anos depois, a Ucrânia tem ainda uma guerra ativa no leste do país, em Donbass, perdeu a Crimeia para a Rússia e enfrenta uma grave crise económica. Maria, por seu lado, conheceu de perto a situação dos presos políticos na Crimeia, esteve no terreno no “buraco negro que é Donbass” e trabalha todos os dias, fins de semana incluídos, monitorizando julgamentos e fazendo lóbi junto de alguns governantes.
A ativista recorda-se bem do primeiro dia dos protestos: “Estava na ópera com uma amiga a assistir a um concerto relacionado com o aniversário do Holodomor [a grande fome provocada na Ucrânia em 1932-1933] quando ela leu o post no Facebook do Mustafa Nayyem.” Nele, o jornalista de origem afegã apelava aos ucranianos para que ocupassem a praça Maidan em reação à decisão do Presidente Viktor Yanukovich de travar a assinatura do acordo de associação com a União Europeia — o que foi entendido por muitos como um afastamento da rota pró-europeia da Ucrânia em troca de uma reaproximação à Rússia de Vladimir Putin. “Fomos direitinhas para a Maidan”, recorda Maria. Chovia torrencialmente e as duas partilhavam um único chapéu de chuva, mas tal pouco importava. Estavam decididas.