Entrevista de vida ao embaixador José Cutileiro: “Cantei o hino para um casal de amantes em Cabul” Da infância em Évora aos corredores da diplomacia, José Cutileiro teve uma vida recheada. Aos 83 anos, numa entrevista de vida, o embaixador fala sobre política, fé e os amigos como Mário Soares.
Cátia Bruno Observador, 19 novembro 2017
Cabul, Londres, Joanesburgo, Bruxelas. O antropólogo tornado embaixador passou a vida a saltar de lugar em lugar, mas nunca perdeu a ligação a Portugal. Habituou-se desde cedo a analisar o país de fora, com a frieza dos emigrados. Hoje em dia, continua a carregar nas críticas em colunas de opinião cheias de recordações do passado, onde também se consegue enternecer com as falhas de caráter coletivas. "Lembro-me quando era antropólogo social e estava no Alentejo a falar com um senhor que era o principal proprietário da aldeia onde vivia, em 64, 65. Perguntei-lhe: 'Como era a relação com Évora, com Lisboa, com o Governo Civil, no tempo da República comparado com agora?' E ele responde-me: 'Isto, senhor doutor, o que é preciso é a gente estar bem com a lei que há'", recorda ao Observador.
José Cutileiro é talvez menos famoso do que o seu irmão, o escultor João Cutileiro, mas a sua vida não lhe fica atrás. Nascido em Évora, cedo veio para Lisboa, numa infância dividida entre o republicanismo do pai e o catolicismo e salazarismo do avô materno. Aos 17 anos, teve uma experiência única entre os seus colegas de liceu no Valssassina, ao ir para Cabul com a família — cidade onde arranjou tempo para desenvolver uma paixoneta por uma afegã mais velha. No regresso, andou perdido entre a Arquitetura, a Medicina, e as tertúlias no Almanaque com José Cardoso Pires e Luís de Sttau Monteiro, até encarreirar na Antropologia em Oxford, local que o "ensinou a pensar".
A vida mudaria com o 25 de Abril. O amigo Mário Soares — "a quem devemos tudo" — abriu-lhe as portas para o mundo diplomático e chegou a levá-lo a ele, homem sem fé, a Fátima, a propósito de uma investigação sobre a morte de Humberto Delgado. Na África do Sul conheceu Nelson Mandela acabado de sair da prisão, bem como Desmond Tutu, e sentiu-se no olho do furacão. Pelo meio, filiou-se no Partido Socialista e desfiliou-se com a mesma rapidez, por considerar que a política não era para si. Continua a preferir a escrita, razão pela qual publicou recentemente o livro Abril e Outras Transições, mas também o prazer de resumir, sem floreados desnecessários, a vida de um homem — sobretudo daqueles de quem mais gosta.