"Agora há pais que têm de relembrar aos seus filhos, em 2014, que a sua pele é linda"
Desde que o jovem Michael Brown foi atingido a tiro por um polícia, a 9 de agosto, há protestos todas as noites numa cidade dos EUA, motivados por tensões raciais. O Expresso falou com um especialista em educação que tem participado nas manifestações para perceber o que se passa em Ferguson - e porquê
Cátia Bruno Expresso Diário, 18 agosto 2014
"Foi na noite passada, enquanto fugia da polícia sob uma chuva de de latas de gás lacrimogéneo e balas de borracha, como tem acontecido todas as noites da passada semana, que DeRay teve uma espécie de epifania: "Foi uma espécie de momento incrível em que pensei: 'isto é na América'. Estou habituado a ver isto em países de terceiro mundo onde a América está a tentar promover a democracia, e isto é Ferguson, Missouri. 'Estou a correr porque tenho medo que a polícia atire sobre mim.' Isto é de loucos."
DeRay Mckesson não é de Ferguson. Não é sequer do estado do Missouri. DeRay foi professor de matemática em Nova Iorque para miúdos de 11 anos, mas cresceu e vive em Baltimore, cidade onde os jovens negros costumam cair facilmente nas malhas da criminalidade. É lá que trabalha atualmente, ajudando o sistema educacional a contratar os melhores professores. "A história do Mike Brown atingiu-me mesmo. Trabalho em comunidades onde há muitos rapazes negros e eu sou um homem negro. Quis vir testemunhar por mim próprio e fazer parte do movimento."
Foi no seu apartamento que ouviu as notícias sobre o rapaz, aparentemente desarmado, atingido a tiro por um polícia num subúrbio de St. Louis. Alguns dias depois estava lá, a mais de 1000 km de casa, para ver de perto o que se passava nas manifestações, que alguns apelidavam de motins. Não foi violência que encontrou: "É uma mistura entre uma festa de bairro ou uma parada misturados com um pouco de raiva e frustração. Mas é muito pacífico."
Michael Brown, a centelha para este barril de pólvora O jovem de 18 anos morreu a 9 de agosto, atingido a tiro pelo agente da polícia Darren Wilson. Ninguém parece saber ao certo porquê. Várias testemunhas dizem que o polícia, que seguia de carro, terá abordado o jovem e o amigo, Dorian Johnson, e que se envolveram numa discussão. Johnson e outras testemunhas dizem que Brown estaria de mãos no ar e desarmado quando foi alvejado pelo agente; a polícia de Ferguson contesta, dizendo que o jovem atacou o agente e tentou sacar-lhe a arma, razão pela qual Wilson disparou.
Os dados da autópsia feita ao corpo de Michael Brown, revelados domingo à noite pelo "New York Times", mostram que o jovem sofreu seis disparos, tendo o último, na cabeça, sido fatal. Na semana passada, a polícia de Ferguson tornou público um vídeo que alegadamente mostra que Brown roubou cigarros de uma loja de conveniência, sem recurso a uma arma, no dia da sua morte - mas que o agente Wilson não saberia dessa informação, ou seja, não terá sido esse o motivo a fazê-lo mandar parar Brown e Johnson. A família do jovem fala em "assassínio de caráter", enquanto a investigação liderada pelo FBI à morte de Michael - feita a pedido do Presidente Barack Obama - continua. Nas ruas continuam também os protestos, todas as noites. Os manifestantes realçam que Brown estava desarmado e falam em motivações raciais da parte da polícia de Ferguson. Numa cidade onde dois terços da população é negra, mas onde só três dos 53 agentes da polícia é que o são, é fácil perceber as tensões que surgem. Segundo dados obtidos pelo site "Buzzfeed", 86% das pessoas mandadas parar em Ferguson durante a condução são negras, bem como 92% dos homens e mulheres detidos.
As autoridades da cidade falam em violência da parte de alguns manifestantes, que terão atirado pedras, garrafas e até disparado contra os agentes policiais durante os protestos, bem como saques. DeRay Mckesson, como muitos outros no local, diz que os responsáveis por estas ações são um grupo muito pequeno e considera desproporcional a reação da polícia - que tem usado constantemente instrumentos como gás lacrimogéneo e balas de borracha sobre a multidão e feito várias detenções. Um jornalista do "Washington Post" e outro do "Huffington Post" foram detidos por não terem saído imediatamente de um McDonald's e acabaram libertados sem qualquer registo ou acesso aos nomes dos agentes que os detiveram.
Os manifestantes juntam-se há quase dez dias, mesmo sob o cerco apertado da polícia. A reação mais aguerrida vem do lado dos jovens, que se reveem em Michael Brown. Têm sempre a mesma rotina: ignoram as ordens de recolher obrigatório, mantêm-se no local, e depois a polícia reage, com força.
O governador do Missouri, Jay Nixon, anunciou esta segunda-feira de manhã que irá enviar a Guarda Nacional para Ferguson, o que pode provocar uma subida ainda maior na escalada dos confrontos entre autoridades e manifestantes. Para este especialista em educação, é mais um sintoma da inaptidão das autoridades do Missouri: "O departamento da polícia daqui, o presidente da câmara e o governador estão completamente fora do seu campeonato. Acho que eles não têm a capacidade para gerir isto, acho que não têm a capacidade para compreender que isto é uma luta de princípios", diz Mckesson. São vários os que criticam a atuação das autoridades do Missouri, entre eles a Amnistia Internacional, que já decidiu enviar um grupo de observadores para o local, algo inédito em território norte-americano. "Os EUA não podem continuar a permitir que os que estão obrigados e têm o dever de proteger se tornem naqueles que a comunidade mais teme", disse a organização em comunicado. A situação é cada vez mais tensa.
Longe da era pós-racial "Seria lógico pensar que isto é uma questão regional da linha Mason-Dixon", diz a professora de Estudos Negros Stephanie Shonekan, da Universidade do Missouri, ao Expresso por telefone, referindo-se à linha que culturalmente demarca o Norte do Sul dos EUA e todas as tensões raciais associadas a esse local histórico. "Mas isto acontece em Chicago todos os dias, em Nova Iorque também, particularmente em locais com uma grande população urbana e uma grande comunidade afro-americana."
Estatísticas de entidades como o Departamento da Justiça norte-americano revelam que a nível nacional os afro-americanos são mais frequentemente detidos e sofrem de mais violência policial. Ao mesmo tempo, continuam a ser dos grupos raciais mais desfavorecidos economicamente. "Não é possível separar as duas coisas, pois não?", afirma Shonekan. "Os afro-americanos que vivem em áreas urbanas não têm o mesmo acesso a empregos, a boa educação, a esse tipo de oportunidades." Como resultado, surgem ciclos de frustração e de raiva que por vezes, na sequência de casos como o de Brown, resultam numa revolta emocional - como uma "barragem que foi aberta", descreve.
Para a professora da Universidade do Missouri, que compara estes protestos aos dos anos 60, o racismo continua a ser um grande problema não resolvido dos Estados Unidos. "Michael Brown podia ser qualquer jovem negro, independentemente da sua classe, educação, emprego. Há partes da sociedade que gostam que os polícias o vejam apenas como um homem negro. Esse é o problema: como um homem negro é visto pela sociedade", explica Stephanie. "Não penso que aquele polícia tenha pensado sobre quem era o Michael, se estudou, se tinha sonhos... Ele só viu um homem negro."
Michael, que ia começar a Universidade dali a dois dias, é agora o rosto da revolta duma juventude negra que se sente marginalizada e que muitos vêm como ameaçadora. "Gostamos de pensar que vivemos numa era pós-racial, mas Trayvon Martin, Jordan Davis, agora Michael Brown, mostram-nos que o racismo está vivo e de boa saúde", desabafa Shonekan.
O mesmo sente DeRay: "Ontem passei por um pai e um filho e o pai estava a dizer ao miúdo, que devia ter uns seis anos, 'não acredites no que te dizem, a tua pele é linda! És uma pessoa linda e podes vir a fazer muitas coisas.' E é de loucos que haja um grupo de rapazes a crescer que pensa que a polícia os pode matar. Já aconteceu, não é ficção. E agora há pais que têm de relembrar aos seus filhos, em 2014, que a sua pele é linda e que não significa que eles são pessoas menores por causa dela." Esta segunda-feira à noite há novos protestos marcados por causa de Michael Brown. DeRay vai lá estar e não será o único.